segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O bostero


Na primeira vez em que conheci um bostero, eu estava no hall da UTI do hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, aguardando a vez de ver meu pai. Era um espaço branco, decorado como a sala de espera de um consultório qualquer, com a diferença de possuir dimensões bem maiores.

Ficávamos ali todos os parentes dos pacientes do CTI, à espera do horário da visita ou da saída de outro parente do elevador, porque só era permitido um visitante de cada vez por leito.

Quando chegava a minha vez, passava pelo balcão de entrada, apanhava uma etiqueta pra colar no peito e entrava no elevador. Depois era só sair no andar da UTI, cobrir os sapatos com uma espécie de touca de tecido fino, abrir aquela porta vai-e-volta de hospital, tipo saloon de faroeste, e entrar.

Repeti esse procedimento ao longo de uns quarenta dias, mas estava só começando, no meu terceiro ou quarto dia de CTI, quando conheci o Bostero. Não me lembro como a gente começou a conversar nem quem se aproximou primeiro, só sei que durante uns seis dias nos encontramos diariamente, à mesma hora e no mesmo local, e trocamos algumas palavras.

O sujeito aparentava uns quarenta e poucos anos, era argentino de Buenos Aires e torcedor do Boca Juniors, ou não seria um bostero (porque é assim que os torcedores do Boca costumam ser chamados na Argentina, pelo menos pelos rivais). O pai dele também estava no CTI. Tinha passado mal no avião, minutos antes da decolagem de volta pra casa. Os dois viajavam juntos, não me lembro se de férias ou por outro motivo qualquer.

Acho que ele deve ter me pedido alguma informação sobre o hospital, e daí o diálogo evoluiu para o problema do pai dele, o do meu pai e logo para o tema que, nos dias seguintes, dominaria nossas conversas, talvez um dos poucos assuntos que pudessem interessar, ao mesmo tempo e com igual intensidade, um argentino de quarenta e poucos anos e um brasileiro de dezenove (que era a minha idade na época): o futebol.

Então eu fiquei sabendo que ele torcia pro Boca e que foi à Bombonera assistir a Batistuta, Latorre e cia eliminarem facilmente o flamengo, o time do meu pai, nas quartas-de-final da Libertadores de Noventa e Um. O jogo foi três a zero Boca, uns dois meses antes daquela nossa primeira conversa, e foi uma das últimas partidas que assisti ao lado do meu pai, se não foi a última. E nem era pra ser assim, porque o jogo tinha uma certa importância e nesses casos eu costumava assistir sozinho, no quarto da minha irmã (já que eu não tinha televisão no meu quarto), e deixava meu pai na sala, torcendo lá pelo time dele. Nesse dia estava me preparando pra fazer isso de novo quando, uns cinco minutos antes do início da partida, meu pai apareceu no quarto da minha irmã. Disse que ela queria ver um programa qualquer na televisão da sala e sentou na cama dela, pra ver o jogo.

Me senti na obrigação de avisar, como se ele não soubesse, que eu iria torcer pelo Boca. Ele não ligou muito, até porque não costumava ligar para essas coisas mesmo. Meu pai era um torcedor contido, quase não se exaltava. Comigo, a única vez foi num Grêmio e flamengo, também na Libertadores, lá no início dos anos oitenta. O Grêmio empatou no último minuto, gol de De Leon, e eu resolvi berrar Grêêêê-mio! no ouvido dele. Tomei um tabefe. Foi justo.

Com exceção desse lamentável episódio, meu pai não se exaltava muito nos jogos, talvez porque se policiasse um pouco, já que conviveu com problemas no coração desde os doze anos de idade. Mas era um torcedor apaixonado, adorava futebol. Assistiu o time dele jogar contra o Liverpool no quarto de um hospital em São Paulo, na véspera ou um dia depois de sua terceira cirurgia cardíaca, não lembro.

Gostava de contar a história do primeiro tri do flamengo. Ele tinha dez anos. Não foi ao jogo porque meus avós, sujeitos sensatos, não devem ter permitido que ninguém levasse um filho deles na Gávea, certos, provavelmente, de que aquele chiqueiro não tinha a menor condição de sediar uma partida decisiva entre Vasco e flamengo, nem no início dos anos quarenta.

No dia da decisão, meu pai, sabe-se lá por que, estava com um tio português que era Vasco. Só que esse meu tio-avô, sujeito consciente, sabedor da verdade irrefutável a respeito do bem e do mal quando o assunto é o futebol carioca, ficava muito nervoso em jogos importantes do Vascão. Nem ouvia no rádio. Preferia circular pela cidade de bicicleta, parando em cada botequim pra perguntar quanto tava. No dia da final de quarenta e quatro, segundo consta, meu pai o acompanhou nesse périplo.

Agora é claro que nem meu pai se lembrava direito de todos os detalhes da história quando me contou e nem eu vou me lembrar de tudo o que ele me disse. Então é melhor ficar com essa imagem, de um português de quarenta e poucos anos e um moleque de dez vagando pelo bairro de Botafogo, o portuga na torcida pelo Vascão e o garoto, mal influenciado por algum amigo ou parente mais velho, torcendo pelo time que vende mais jornal, e que por isso vem sendo, pelo menos desde os anos vinte, sistematicamente beneficiado pelas arbitragens em jogos decisivos contra qualquer adversário nos limites do Brasil, que o diga os atléticos, grêmios e botafogos da vida.

E nesse dia não foi diferente. O Vasco jogava pelo empate, e o flamengo ganhou com um gol no último minuto, de um argentino, que empurrou descaradamente o valente Rafagneli, xerife da zaga cruzmaltina, e cabeceou para as redes de Barqueta, com a complacência e o beneplácito do excelentíssimo senhor juiz.

Nessas horas, quando escutava a tal história, via que, apesar de ser um cara inteligente, esclarecido, meu pai era um autêntico flamenguista. Porque ele tinha a desfaçatez de dizer que ninguém tinha visto direito o lance, e que ninguém podia provar que foi falta no Rafagneli, mesmo que até hoje seja sabido e notório, entre as pessoas de bem, que aquele argentino safado empurrou com as duas mãos o bravo Rafagneli, esse uma rara amostra de argentino sangue bom. A prova do crime está aí em cima, nesse flagrante incontestável.

Na Copa de Cinqüenta, meu pai já tinha dezesseis e estava lá. Foi a vários jogos. No 7 a 1 em cima da Suécia, resolveu ir de geral, e um vendedor ambulante resolveu deixar cair uma quantidade considerável de café na camisa dele. É, vendiam café na geral do Maraca na Copa da Cinqüenta.

No 6 a 1 sobre a Espanha, meu pai foi um dos que cantaram Touradas de Madri na arquibancada, diante daquele baile da seleção nos espanhóis. É, em vez de paródias do funk, cantavam música do Braguinha no Maraca na Copa da Cinqüenta...

E na final contra o Uruguai é do meu pai a imagem que eu guardei, sem nunca ter visto, daquela tragédia. Ele estava onde hoje ficam as arquibancadas brancas, e o gol do Ghiggia foi à direita das cabines de rádio. Então meu pai teve a nítida impressão de que a bola tinha batido na rede pelo lado de fora. Acreditou nisso até virar o rosto e ver o goleiro uruguaio, Máspoli, pulando feito um alucinado. Aí percebeu que tinha sido gol.

Ele, que também foi goleiro na vida. Não podia jogar na linha, por causa do coração, e resolveu o problema indo pro gol nas peladas de Botafogo. Usava uma camisa verde, que lhe rendeu o apelido, não tão honroso assim, de Caldo Verde. Contava isso rindo, enquanto se preparava pra acender o cachimbo.

Aliás, só não fumava assistindo um jogo de futebol em condições excepcionais, como aquela do flamengo e Boca, pra não deixar o cheiro no quarto da minha irmã. E também porque, pra falar a verdade, ele não me pareceu muito preocupado com a partida, apesar de ser uma quarta-de-final de Libertadores, contra o Boca na Bombonera.

Enquanto os bosteros eliminavam o flamengo sem serem ameaçados em momento algum pelos adversários, meu pai assistia calado. Lamentou de maneira bem sutil cada um dos três gols argentinos, com aquele clássico estalar de língua que nas histórias em quadrinhos é traduzido por tsc, e no fim deixou-se encostar na parede e deu um longo suspiro, como se não se importasse muito com o resultado e tivesse mesmo era de saco cheio de tudo o mais em volta. Se bem que ele pode não ter feito nada disso e eu é que, influenciado pelos acontecimentos posteriores, posso ter criado o suspiro e os tscs involuntariamente. Afinal de contas, lá se vão dezesseis anos.

Sei é que fiquei quieto no meu canto e nem nos dias seguintes conversei sobre aquele jogo com o meu pai. Mas com o Bostero relembrei não só aquela partida como a eliminação do Boca nas semifinais, diante do Colo Colo, que acabaria conquistando a Libertadores de Noventa e Um.

Se não me falha a memória, o Colo Colo tinha acabado de ser campeão (vencendo o Olimpia na final) quando trocamos algumas palavras pela primeira vez. Daí passamos a comentar basicamente a campanha do Boca em nossas conversas-relâmpago e nem falei do Sul-Americano de Quarenta e Oito, que o Expresso da Vitória do Vasco conquistou em cima de La Máquina do River Plate, do Di Stefano.

Uma certa compulsão costuma me fazer falar desse jogo aí de cima diante de argentinos, mas dessa vez não tive tempo. Na média, não duraram nem cinco minutos os nossos poucos bate-bapos. Foi o tempo de um ou outro subir para o CTI. Uma vez me encontrei com ele lá dentro, quando descobri que o pai dele e o meu estavam um do lado do outro. Dessa vez não conversamos, lógico, só nos cumprimentamos com um leve bater de cabeça, de longe, e ficamos em silêncio, ele olhando para o pai dele e eu olhando para o meu.

No sexto dia a visita ao CTI não foi aberta no horário habitual. O pai do Bostero tinha morrido. Soube na cantina do hospital, pela minha mãe, e de lá avistei o cara no pátio. Ele estava em pé, aparentemente tratando de algum assunto burocrático com alguém do Pró-Cardíaco, até porque precisava transportar um corpo para outro país, e isso deve ser um troço complicado de fazer.

Quando cheguei perto, ele me viu. Então eu me armei de uma daquelas caras de Sei Lá que a gente costuma fazer na hora de dar os pêsames pra alguém, estendi a mão e balbuciei um cumprimento ininteligível, num portunhol picareta. O Bostero apertou minha mão e agradeceu o cumprimento.

Trocamos um rápido olhar. Ele estava visivelmente abatido, mas não estava chorando. Aparentava um certo ar resignado, e a minha sorte é que continuou a tratar dos assuntos burocráticos com os representantes do hospital, o que me permitiu sair de banda, sem graça, e voltar pra cantina.

Nunca mais vi o cara. Se cheguei a perguntar o nome dele em algum momento de nossas conversas, não me lembro mais qual é. Só sei que ele aparentava uns quarenta e pouco anos, era argentino, de Buenos Aires, e torcedor do Boca Juniors. E que o pai dele morreu ao lado do meu.

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