segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Pontos corridos

Pai de quarenta e quatro e filho de sete andando de mãos dadas. Cena tocante, digna de comercial de cartão de crédito em qualquer circunstância, ainda mais nessa. Últimas semanas do campeonato brasileiro, o time do coração de ambos prestes a se tornar campeão com seis rodadas de antecedência, após uma campanha sem precedentes na história.

Enquanto caminham na direção do Maracanã Arena Sportcenter... É, estamos no futuro, e a mudança mais marcante no cenário é mesmo o gigantesco shopping center construído no lugar do antigo estádio demolido. São duas mil lojas, trinta e oito salas de cinema, estacionamento para dez mil veículos e outras centenas de atrações, tipo rinque de patinação, boate e bingo. No meio disso tudo, um campo de futebol rodeado pelo que há de mais moderno em instalações para a prática e o deleite do nobre esporte bretão.
As velhas arquibancadas de concreto já não existem há uns vinte anos, assim como seus acessos apertados, aqueles túneis estreitos, escuros, de onde só se via uma luz no fim, que primeiro era um ponto do céu; depois, à medida em que subíamos, virava um pedaço da marquise do estádio, em seguida parte da torcida adversária, o placar, o verde do gramado e, enfim, já com tudo em volta iluminado pelo sol, a nossa torcida.
Em cima do vão de entrada desses acessos, à distância de um braço esticado, ficavam as placas de alumínio da Coca-Cola ou do guaraná Taí. As melhores eram as soltas, mal aparafusadas, porque nelas a porrada fazia mais barulho e doía menos. E era obrigatória a porrada na placa na saída do estádio, sempre. Na derrota, uma pancada só, com toda a força possível e de preferência acompanhada de um palavrão qualquer; na vitória, rápidas batidas de tambor de banda, junto com o nome do time; e no empate um tapa displicente, só pra constar.
Mas isso é coisa do passado e, como ia dizendo, enquanto caminham na direção do Arena Maracanã Sportcenter, pai e filho conversam. Ou melhor, o filho pergunta e o pai responde.
Filho: Nosso time é o melhor de todos, né pai?
Pai: Claro, filho, não tamo disparado na ponta, ataque mais positivo, defesa menos vazada, artilheiro, maior goleada e dezoito pontos na frente do segundo?
Filho: É, tamo. É a maior campanha da história, né pai?
Pai: Da história do Brasileirão, filho. Nenhum time fez o que a gente tá fazendo, nunca.
Filho: Então esse é o maior time que a gente já teve né, pai?
Pai, com os primeiros sinais de dúvida, quase claudicante na resposta, mas conseguindo a firmeza necessária ao apelar para o velho Depende: Aí depende, filho.
Filho: Depende de quê?


Pai: De um monte de coisas. Esse time é muito bom, mas se aquele time de 97 jogasse o campeonato desse ano botava uns trinta pontos de vantagem pro segundo. O campeonato acabava em julho. Tem o time de 74 também. Era bem menos técnico que esse, tinha uns botinudos e tal, mas eliminou o Santos do Pelé e ganhou do Cruzeiro do Piazza, Palhinha e Dirceu Lopes, na raça, com mais de 100 mil no Maraca na final.

Filho, alargando as sobrancelhas e olhando pra cima, na direção dos olhos do pai: Final?
Pai: É, filho, antigamente o campeonato brasileiro tinha final.
Filho, com uma expressão mais ou menos parecida com a que fez ao avistar o embrulho do mini-simulador de vôo, no Natal anterior: Que nem Copa do Mundo?!!!!
Pai: É, filho. Dois times disputavam o título na decisão. A diferença é que tinha final com um, dois ou até três jogos entre os times, dependia do regulamento do ano.
Filho, ainda com a mesma expressão, realçada pelos olhões abertos: Tinha semifinal também?
Pai: Se tinha? Em 84 metemos três no Grêmio. Jogaço. Em 2000 eliminamos o Cruzeiro do Felipão dentro do Mineirão. E teve várias semifinais históricas. Em 76 o Corinthians dividiu o Maraca com o Fluminense e levou na raça. Em 81 fizeram de tudo no Morumbi pro São Paulo ganhar do Botafogo. Teve invasão de campo, juiz roubando, e acabaram conseguindo.
Filho, ainda com a mesma expressão, que, aliás, vai se manter até o fim da história, já vou logo avisando: E teve final histórica também, pai?


Pai: Todas, filho, algumas mais que outras, mas todas foram históricas. Em 75 o Inter ganhou do Cruzeiro. Na hora do gol, o Figueroa subiu pra cabecear com um único raio de sol bem em cima dele. O Raul Wanderléa nem se mexeu.

Filho: Wanderléa?

Pai: O goleiro do Cruzeiro. A torcida do Atlético inventou esse apelido porque ele tinha uns cabelos compridos, meio ridículos, e jogava de camisa amarela numa época em que goleiro só usava preto ou cinza. O Raul tava na final de 80 também, duas batalhas, Atlético e Flamengo, dois timaços.
Filho: E quem ganhou?
Pai: O Flamengo, mas só depois que expulsaram o Reinaldo...
Filho: Reinaldo?


Pai: Deixa pra lá, filho. Em 85 foi engraçado. Noventa mil no Maraca pra ver o Bangu, é mole? Mas deu Coritiba, nos pênaltis. Em 88 o Bahia segurou o zero a zero no Beira-Rio e levou a taça. Até a Portuguesa já chegou na decisão. Foi em 96, mas perdeu pro Grêmio do Felipão. E em 2002 foi o primeiro dos dois campeonatos do Robinho. Ele pedalou, ajudou a trucidar o Corinthians na final e o Santos foi campeão.
Filho: E o nosso time, pai, fez muitas finais?
Pai: Seis, filho. Só o São Paulo fez mais, mas eles só ganharam três, do Atlético, do Guarani e do Bragantino, e perderam cinco, uma delas pra gente. Nós ganhamos deles, do Cruzeiro, do Palmeiras do Felipão e do São Caetano.
Filho: E perdemos de quem?
O pai tenta pegar no bolso da calça os ingressos e passar logo pela roleta falante, que pede para receber os cartões magnéticos com voz de aeroporto. Responde rápido, e bem baixinho: Do Inter e do Fluminense... Pra depois elevar o tom de voz numa pergunta clássica: Outro sorvete?
Filho: Bem que esse jogo hoje podia ser uma final, né, pai?
Tranqüilo, minutos antes do jogo em que seu time pode se sagrar campeão, o pai lembra o quanto sofreu nas decisões do passado, no quanto de tensão teve de suportar em lances que quase lhe tiraram alguns daqueles títulos. Compara tudo isso à certeza de mais esse campeonato ganho, senão nessa na próxima rodada, em casa, contra o lanterna da tabela, e responde com a mais sincera convicção de que sua resposta seria diferente em qualquer circunstância, menos aquela:
Não, esse ano, não, filho.
O garoto se cala. O pai também, e enquanto conduz o filho pelas poltronas acolchoadas, lembra que não terá uma placa de alumínio para extravasar suas emoções na saída da arquibancada, e de como era chata a voz daquela roleta.
ADENDO:
Gosto dessa história de turno e returno, com todos jogando contra todos. É interessante a briga ponto a ponto a cada rodada, pra decidir quem vai ser rebaixado, quem vai pra Sul-Americana ou pra Libertadores. Mas acho triste que tenham acabado com uma das mais justas tradições do futebol brasileiro: a final do Brasileirão.

Pra ser campeão, e ainda mais do campeonato brasileiro, um time tem que mostrar que agüenta a pressão de uma grande final. Por isso, a fórmula ideal do campeonato brasileiro, na minha opinião, seria uma mistura do modelo atual com as semifinais e finais de 1975 e 1976. Nesses anos, tivemos apenas um jogo nas duas semifinais e na finalíssima, sempre na casa do time de melhor campanha. Seriam, então, apenas duas datas a mais, uma pras semifinais e outra pra final. Coisa fácil de resolver em termos de calendário.
Ficaríamos assim: o primeiro colocado jogando contra o quarto e o segundo decidindo a vaga na final com o terceiro. Os quatro, lógico, classificados para a Libertadores. E para dar mais valor ao turno e returno de pontos corridos, o primeiro e o segundo colocados teriam todas as vantagens do mundo nesses jogos, ou seja, jogariam em casa e pelo empate. Nada de prorrogação e pênaltis, pra não dar chance de amarrar o jogo. Na final, o time que tivesse terminado o turno e returno com maior número de pontos, ficaria com a vantagem. Simples, não?
Dessa forma, os times se matariam não só para chegar entre os quatro, mas pra ficar em primeiro também, porque teriam uma vantagem enorme nas finais. Depois, só precisariam provar que podem ganhar o título num jogo decisivo pra comemorar um brasileiro como se deve, com vitória ou empate, mantendo a bela tradição das finais, e não com uma derrota, como o Corinthians em 2005, se bem que esse campeonato aí não é exemplo pra nada. Ou melhor, é exemplo, sim, de como se pode armar resultados pra garantir um título nesse tal sistema de pontos corridos, que todos dizem ser tão justo...

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